Relato do encontro que aconteceu em 03 de fevereiro de 2015:

“Estou sendo”

O trabalho do Grupo Comunitário de Saúde Mental neste ano propõe o tema: “No cotidiano, compondo uma história”. Diante desta proposta, poderíamos nos perguntar sobre o porquê se preocupar com a história quando, no mundo atual, ela parece preenchida pelas descrições de violência, discórdia e corrupção. Neste sentido, o grupo desta manhã nos ajudou a compreender motivos pelos quais vale a pena estar atentos à história. 

Começamos ouvindo o relato do participante que se percebia restrito à rotina de correria do dia a dia até o episódio, vivido nesta semana, quando, em meio a um dia de trabalho, escutou um cachorro chorando e descobriu que se tratava de um cão que tinha caído em um córrego após ter sido atropelado. Sentiu-se mobilizado a deixar os afazeres e entrar no córrego para resgatar o cachorro. A história foi relatada no momento do Sarau, narrada por sua esposa que percebia uma sintonia entre esta história e a música Intuição, de Osvaldo Montenegro porque, segundo ela, precisamos de sensibilidade para conseguir ir além das preocupações rotineiras. Compreendi que escutamos na música um convite: “Canta o que não silencia e bate o pé no chão” e pensei que nadar para salvar o cachorro expressava um envolvimento com um desejo de vida que “não silencia” e, para além de colocar os pés na água, representava a experiência de “bater o pé no chão”, metáfora de um envolvimento profundo com a realidade.

Seguimos com o relato de que um grupo de pacientes internados havia decidido escrever todo dia uma frase em uma lousa do hospital, buscando identificar a cada dia um texto que tocasse o grupo. Compreendi tratar-se de uma ação criativa e cooperativa. Depois ouvimos a frase “Ainda não se fazem pessoas de algodão, pessoas que enxuguem suas próprias mágoas” (Cícero), acompanhada da explicação de uma participante que percebia não dar conta de enxugar as próprias lágrimas e estava aprendendo a buscar a companhia das pessoas. Outra participante contou sobre uma visita voluntaria ao hospital, lembrando como agradou os pacientes quando cantou: “As folhas quando caem, nascem outras no lugar” (Roberto Carlos). Ainda escutamos um relato sobre a descoberta de que podia ser razoável fazer massagem no pai, enquanto oportunidade de deixar de se preocupar demasiadamente consigo: “acho que enxergar o problema dos outros é um passo para ajudar…” Alguns outros depoimentos abordaram lembranças do passado e nos permitiram perceber que podemos compor a nossa história com as coisas que acontecem agora, mas também resgatando o que já foi vivido. Escutar os vários relatos permitia perceber como cada um estava construindo a própria a história e compreender mais sobre o que caracteriza uma pessoa humana.

Como não citar ainda o depoimento do participante que relembra a trajetória da esposa até a aprovação em um concurso, admirado com o enorme empenho dela e comovido com a aprovação. Aqui pudemos compreender algo quase inusitado no mundo de hoje, ou seja, que a realização de uma pessoa pode acontecer em meio à felicidade do outro: “No dia que ia sair o resultado nem conseguimos dormir de noite”. Descobrimos que podemos compor a nossa história de forma misturada com a dos outros, a ponto de combinar a realização de si com a felicidade do outro. 

Em seguida, uma participante nos surpreendeu com mais uma pérola. Aconteceu com a leitura do texto de Clarice Lispector: Porque é que você olha tão demoradamente cada pessoa? Ela corou: – Não sabia que você estava me observando. Não é por nada que olho: é que gosto de ver as pessoas sendo… Seguiu-se o comentário da participante que trouxe o texto: “as pessoas estão existindo, vivendo, sendo seres humanos… neste grupo a gente se percebe sendo…”

Talvez nenhuma frase tenha conseguido sintetizar melhor a proposta do Grupo Comunitário: “estar sendo”, ou seja, perceber, valorizar e colaborar com o “acontecer da pessoa” em si e nos outros. Assim, vamos aprendendo o que é ser humano. Vivendo e escutando os relatos, descobrimos que experimentamos uma vibração diferenciada quando algo nos corresponde profundamente. Penso ser um problema do mundo de hoje quando confundimos qualquer ação com um gesto humano, como se qualquer barulho fosse música. Um violão pode vibrar se batemos nele como em um tambor, mas somente produz música quando as cordas são adequadamente tocadas. Nós, seres humanos, pulsamos de forma diferenciada diante do “estar sendo”. Esta é a nossa marca registrada, aspecto constitutivo, inerente e admirável: vibrar diante do “estar sendo”, nosso e dos outros.

Desta forma, o grupo havia explicitado o sentido do trabalho deste ano, acompanhar a história porque representa a possibilidade de reconhecer o evento do acontecer humano. E trabalhar para construir a nossa história junto com a história dos outros”.

Sérgio